01 maio 2008

 

ALMOÇO

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Depois daquela leitura esquisita, como fogo em palha seca espalhou-se pelas vilas da fazenda a história de um homem ainda mais louco e santo do que o finado Ribamar. Iam chegando de mansinho. Todos queriam ver de perto o Poeta. Eram homens e mulheres com as carnes afundadas em si mesmas e marcadas pelo Sol e pelo tempo e pela dor e pela raiva e pela saudade de quem nunca existiu. A maioria parecia gado fraco faminto por água esperando mais da morte do que da vida. E a estes, a presença sacra de um D'us parecia tão distante e tão presente que poderia comover o mais agnóstico dos clérigos.

Um cheiro de banha queimada saía da cozinha, e uma fumaça grossa como sal virgem ganhava o espaço infinito. Um cachorro latiu. Uma velha gorda e suada surgiu com uma panela de bronze sólida, colocando-a sobre a mesa que era tão grande que ia até ali de tão distante. Cabiam todas as pessoas que ele desejasse convidar. Mas naquele instante, bastariam ele e o Poeta.

A velha gorda, depois de servi-los, gritava e batia palmas, desorganizando a multidão, tangendo dali os miseráveis para que pudessem comer em outro lugar. A velha gorda tinha o olhar rosado e dócil, acendeu um cachimbo de fumo forte e vil, olhou para o Poeta e sorriu. O carinho da velha fez o Poeta suar de nojo e de emoção; a feição lhe era familiar.

- Essa é minha irmã, Poeta! Chama-se Ême. - disse Fred.

- Ême!? - Sim. Ême, a letra do alfabeto... Já virou tradição para alguns daqui de casa. Ah!, e ela é filha do primeiro casamento de papai, ela tem exatamente trinta anos a mais do que eu, Poeta - completou Fred.

- Entendo... - o Poeta já sacava o carinho de Ême com o sorriso de Ípsilon.

- E onde estão os outros que não vêm almoçar? - perguntou pensando em Ípsilon, que deveria estar ali em qualquer lugar.

- Esse almoço é nosso, amigo Poeta. Nosso!

- Obrigado!

- No jantar, acrescentaremos Ana, Ême, Ípsilon e Teodoro.

- Ípsilon e Teodoro? Eu os conheço? - perguntou, disfarçando sobre Ípsilon, pois a havia visto no cortejo de Ribamar.

- Duvido muito. Ípsilon é minha sobrinha; Teodoro é o cachorro da casa.

E riram mais do que se alimentavam. Ali, naquele instante, o espírito do humor era o prato principal, e deveria ser devorado até o fim, pois a alegria tem alma breve. Bem breve.
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25 abril 2008

 

A LEITURA DA CARTA DO MORTO

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Fez-se na sala um silêncio tão ensurdecedor, que o Poeta se sentiu mal com a eleição que lhe fora designada: ser o arauto de um homem morto. Mas de um homem morto que lhe sorrira.

Dentro de um envelope simples, com escrita forte, sete folhas soltas, em sete idiomas diferentes e em sete cores.

A primeira folha era azul. Havia escrito que deveria ser rasgada imediatamente. E assim foi feito. A segunda, terceira e quarta folhas eram verde, amarela e branca, nessa ordem. Deveriam ser colocadas em água fervendo, e depois de desfeitas, serem tomadas como um chá. E foi feito.

Após o chá das letras e das folhas do Ribamar, a sessão continou. Sobravam, então, três folhas escritas. A quinta, de cor laranja, tinha escrito: "Para doutor Frederico, o meu muito obrigado."

A sexta folha era de um amarelo forte, dourado, e havia: "Com todo o meu amor." Era destinada à família do falecido.

Já a sétima, de cor vermelho claro, continha: "Poeta, leia para todos que estão na sala do doutor Frederico. Esta mensagem foi adaptada por mim. Não tive a alegria de conhecer o senhor nem o senhor teve o privilégio de ficar em minha presença por algumas horas e aprender bastante do pouco que aprendi, precisei morrer um dia antes de sua chegada, mas lembro-lhe que foi o senhor quem se atrasou, e foi por causa de Espelho."

O Poeta sentia o sangue esquentar e parar de circular em suas veias, e todos demonstravam temor e tremor. O homem com cara de poucos amigos, de bigodes e sobrancelhas imundas resmungou alguma coisa, mas calou-se envergonhado com o olhar dominador de Fred sobre ele.

- Escutem, então, vou ler o que nos deixou, por escrito, o Ribamar! - disse o Poeta, percebendo os barulhos da afinação e dilatação dos ouvidos de cada um.

"Idnerpa euq es ednerpa odnarre; euq recserc, sogima, oãn acifingis rezaf oirásrevina. Euq o oicnêlis é a polhem atsopser odnauq es evuo amu megabob. Euq rahlabart acifingis oãn os rahnag oriehnid; euq sogima a etneg atsiuqnoc odnartsom o euq; euq so soriedadrev sogima erpmes macif moc êcov éta o Mif. Euq a edadlam es ednocse sárta ed amu aleb ecaf. Euq oãn es arepse a Edadicilef ragehc, sam es arucorp rop ale. Euq odnauq osnep rebas ed odut adnia oãn idnerpa adan; euq a azerutan é a asioc siam aleb an adiv. Euq rama acifingis es rad rop orietni; euq mu ós aid edop res sima etnatropmi euq sotium sona. Euq rivuo amu arvalap ed ohnirac zaf meb à edúas e rad mu ohnirac mébmat zaf. Euq rahnos é osicerp! Euq osson res é ervil! Euq Su'd oãn ebíorb adan me emon od roma; euq o otnemagluj oiehla oãn é Etnatropmi; euq o euq etnemlaer atropmi é a zap roiretni. E, etnemlanif, idnerpa euq oãn es edop rerrom arp rednerpa a reviv."

Terminada a leitura, o Poeta sentou-se, tomou outro trago da cachaça caseira e perguntou sobre o almoço. Fred não sabia nada sobre o almoço, mas mandou providenciar o mais rápido possível, ainda em êxtase interrogativo.
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19 abril 2008

 

A CARTA

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Mal estacionou, Fred Samburá recebeu o Poeta como um súdito recebe seu adorado rei. O Poeta recebia e dava abraços sem saber a quem. Ora, e muitos nem sabiam quem era aquele homem de nome estranho, mas a fraternidade era comum naquele ambiente. Não havia a menor sombra de dúvida: o Poeta era querido, esperado e bem-vindo naquele lugar.

- Para abrir o apetite, Poeta! - Disse Fred, entregando-lhe uma dose de cachaça. - Isso enquanto o almoço não vem!

- Esse é o Fred que sempre conheci! – respondeu.

Tomando tudo de um gole só, soltou a voz arranhando o ar como gato afiando unhas no madeiro:

- Essa é das boas! E feita por você, hem? - Comentou o Poeta.

- É sim! Mas é hobby. Meu negócio, por ora, é somente camarão... Mas a gente não veio aqui para conversar sobre trabalho, ou veio?

- Não... Mas sempre pode surgir uma oportunidade! - disse o Poeta.

A casa estava cheia. Todos riam e estavam alegres. O Poeta se lembrou do cortejo fúnebre e perdeu-se, por poucos segundos, em pensamentos e sentimentos de cor ocre. Olhando para aquela gente, percebeu que ninguém conseguia rir tão bem como Ribamar, o morto que sorria.

- Poeta! Dê-me um abraço, e deixe de pensar no morto. Os mortos enterram seus mortos. - Gritou Ana, esposa de Fred, já lendo seus pensamentos.

Já abraçados, Poeta sentia os seios de Ana contra seu peito, e o cheiro de gordura que saía da cozinha impregnado no corpo da mulher do amigo, como outrora o cheiro de peixe em Fred.

- O amigo Ribamar só fez sorrir nesta vida, morreu e ficou com cara de defunto triste. – disse Ana.
- Nenhum defunto é triste, principalmente depois de morto. - Disse uma adolescente com síndrome de Down.

Ninguém reparava na garota, mas ela olhava para o Poeta. Ele lhe deu atenção, ou por curiosidade ou por dó. Porém, ficou sem entender o "principalmente depois de morto".

- Pobre Riba! Grande contador de histórias: parece que andou por esse mundo quase todo a pé! E morreu aqui...

- Mas ele deixou uma carta! - Falou um rapaz que tem um olho de cada cor.

- Que dizia na carta? - Perguntou o Poeta.

- Isso ninguém no mundo num há de saber. - Resmungou um homem com cara de "poucos amigos", com cheiro de peixe e sol, cujo bigode e sobrancelhas eram tão grandes e tão imundas que pareciam unir-se a qualquer instante.

- Ele deveria ser um andarilho, sempre em busca de caminhos longos, mas a família já está a caminho. - Falou uma velha cega de bengala, provavelmente mãe de algum trabalhador.

- Num sei o porquê. - Continuou a cega - Quando chegarem os parentes, os restos do Ribamar já estarão enterrados e fétidos. Será que vão querer abrir a cova, meus D'us?

- Tia, eles vêm pegar documentação, essas coisas pra receberem dinheiro, a pensão da família. - Explicou um trabalhador de mãos marcadas pelo vento, pelo sol, pelas cordas, pelo tempo.

- É! O destinatário há de se manifestar... - Profetizou Fred, e a discussão prosseguia.

A mente do Poeta ficou melada, arejada e pegajosa como a alegria do sexo, e finalmente disse, depois de tomar outro trago:

- A carta é para mim!

Silêncio geral. Todos os olhos, inclusive os da velha cega, que parecia enxergar mais que todos ali, olharam aquele homem de nome esquisito.

- Ribamar estava no caixão. A tampa estava aberta. Quando o vi, ele estava com cara de defunto que sofre... Depois, ele sorriu para mim.

- O senhor vai desculpando aí, mas isso pode ter sido visagem, sol, calor, fome... Defunto é defunto. Defunto não chora nem ri. – Adiantou o rapaz de olhos coloridos.

- Podem me dar a carta. Agora sei que a mensagem é para mim. - Disse o Poeta, com tamanha autoridade que Fred mandou um menino manco trazer um baú acorrentado para a sala. A carta do Ribamar estava ali.

Após aberto, o Poeta notou que a carta continha sete páginas. Todas pareciam dizer a mesma mensagem, mas eram escritas em sete idiomas diferentes. Os olhos do Poeta ardiam e fumaçavam, fato que causou estranheza na casa de Fred.

- Ribamar escreveu para mim!? - Assustou-se, em pensamentos, o Poeta.

O silêncio foi cortado pela voz doce-rouca e áspera-aveludada do Poeta, que iniciava a leitura da carta de Ribamar, o morto que lhe sorrira.
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12 abril 2008

 

UM MORTO QUE LHE SORRI

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Ao chegar na fazenda de Fred Samburá, o Poeta percebeu o peito feliz. Assim como em dias de chuva, a alegria ou a tristeza -em formatos de cores e cheiros- envolvia o Poeta por completo, desenhando um sorriso em seus lábios ainda ressecados pela farra com Espelho. Continuou por um caminho de piçarra que, com certeza, resultaria no reencontro com o amigo Samburá.

Ao longo do caminho, vindo de encontro ao Poeta, as mercenárias mulheres de preto choravam a alma de alguém. Parou em sinal de respeito, e esperou o cortejo passar. O caixão estava, ainda, aberto, talvez para que todos que por ele passassem, soubessem quem era.

O Poeta perguntou quem era o defunto a um garoto que seguia à parte do funeral:
- Quem era o velho?

- Seu Ribamar. Trabalhava aqui há pouco tempo, era muito religioso, estava doente da cabeça e morreu ontem. Ninguém sabe de sua família nem de onde veio, mas sabemos para onde vai. - respondeu o garoto alegre e excitado por acompanhar um funeral, talvez o primeiro de sua vida. Ou talvez não. Provavelmente funerais lhe fossem comuns, são sempre cortejos.

- E para onde o corpo vai? - perguntou o Poeta.

- Para o cemitério. - Falou quase ironicamente e já saindo depressa, a fim de não se afastar muito da procissão.

O Poeta notou o rosto cinza-amarelo e a expressão fechada dos mortos tristes. Pensou na tristeza do morto quando em vida. Parou o carro, desceu e acompanhou o funeral.

O choro e as músicas melancólicas o fizeram chorar.

Logo em seguida, uma das mulheres de preto, provavelmente a chefe das carpideiras, lhe disse bem perto do ouvido e apertando com força o braço esquerdo do Poeta.

- Pode chorar, mas não venha cobrar as suas lágrimas depois. Somos muitas e o dinheiro é pouco. Sem entender, o Poeta quis rir, e sorriu com os olhos. Olhou para o cadáver já esverdeado por causa do Sol. A gente dá trabalho quando nasce e quando morre - pensou.

Em meio aos curiosos, uma menina chamou a atenção do Poeta. Ela ria com outras garotas, faziam fuxicos umas com as outras e apontavam para o 'forasteiro'. O Poeta riu-se da situação. Resolveu aproximar-se do morto para seguir até a casa principal e chegar antes da hora do almoço. O mesmo garoto que foi abordado pelo Poeta, há poucos minutos, reapareceu e veio com novidades.

- Seu moço, o velho tem família, sim. Já avisaram, e um filho vem pra cá ainda esse ano.

- Ainda esse ano? Por que não vem logo? - Indignou-se o Poeta.

- Deve ser dinheiro...

- Ah, é... Deve ser dinheiro. - Concordou com vergonha.

- Seu moço, minha prima mandou avisar que o senhor é moço bonito.

- Obrigado... Quem é sua prima?

- Aquela de vermelho. Ela é sobrinha do seu Samburá. - Disse apontando para a moça que chamou a atenção do Poeta.

- Diga para a sua prima que ela é muito bonita também. Qual é o seu nome?

- Pedro, mas pode chamar de Bó. Todo mundo aqui me conhece por Bó. Tem gente que nem...

- Não, Pedro, não quero saber o seu nome... Quer dizer, quero saber que posso te chamar de Bó. Agora, Bó, qual o nome da sua prima?

- Qual delas? A que mandou dizer recado ou as outras?

- A que enviou o recado, Bó! - respondeu o Poeta já entendendo o motivo do apelido.

- Ah!, é Ipsílon! - respondeu o garoto.

- Quê? - 'Quê' não! Ipsílon...

- Sua prima se chama Ipsílon? - perguntou o Poeta mais descrente do que espantado. Diga que ela é muito bonita. Agora tenho que ir.

- Seu moço, e quem é o senhor? - Sou amigo do Samburá. Venho passar uns dias aqui, e agora vou almoçar com ele, em sua casa.

- Ah, sim! Intonce pronto, teje explicado tudinho: a casa arrumada, muita fartura e alegria na casa grande. O Poeta riu e perguntou:

- Bó, onde poderei ver Ipsílon outra vez?

- À noite. Ela mora na casa grande também, mas de tarde trabalha na Prefeitura.

Foi olhar o morto para dar adeus. Ao ver, Ribamar era um cadáver verde-esbranquiçado que lhe sorria. Olhou para os lados, pensou em desmaiar. Voltou os olhos para Ribamar que lhe continuava rindo.

O troller do Poeta nunca seguiu um caminho mais rápido. E feliz. E admirado.

- Essa é boa! Ribamar é um morto que sorriu pra mim. - Pensou o Poeta ainda desacostumado com as surpresas da vida.
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09 abril 2008

 

É LOUCURA QUE NÃO SE PERCEBE

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Depois de oito dias seguidos, os pulmões do Poeta e de Espelho precisavam do ar puro, mas não tinham mais tempo. Precisavam voltar. Espelho para as rezas confusas da sua mãe e do povo daquele lugar. Poeta tinha que seguir o caminho em busca da fazenda de Samburá.

Na estrada, o carro seguia vagarosamente: na mente do Poeta, uma nostalgia pré-existente acariciava-lhe o peito amarelo-saudade por causa de Espelho.

O celular toca.

- Olá! - Poeta? Aqui é Fred Samburá! Você chega quando?

- Em poucas horas...

- Está tudo bem?

- Sim. E por aí? - pergunta, o Poeta, percebendo algo de estranho no tom de Fred

- Houve um acidente na estrada... Fiquei preocupado. Resolvi ligar. Chega para o almoço?

- Chego para o almoço.

- Poeta, você chega para o almoço de hoje?

- Sim... Para o almoço de hoje! - responde rindo com alegria, o Poeta.

O celular toca outra vez. Um número nunca visto antes. O Poeta abre a janela de seu veículo, e lança o celular com a força de muitas raivas guardadas.

- Por que você fez isso? - Grita apavorada, Espelho.

- Para quê tanto escândalo?

- O seu celular...

- Sim... Agora não é mais.

- Poeta, você é um louco.

Espelho e Poeta faziam o silêncio mais gritante que poderiam imaginar. O tempo e o carro deslizavam. O veículo foi perdendo velocidade. E foi parando, parando, até chegar em frente ao boteco do homem gordo de traseiro estreito. Antes de Espelho sair, o Poeta segurou-a pelas mãos.

- Por que seu nome é Espelho?

- Porque, em mim, você se via a si mesmo.

- Eu não estranharia ninguém que jogasse fora um celular, e você estranhou.

- E eu não jogaria jamais um celular pela janela de um carro em movimento, e você jogou.

- Então eu não poderia, em hipótese alguma, ver a mim mesmo em você.

- Tanto viu e reconheceu que...

- Espelho, espere!

- Diga!

- Você não acha loucura muita um celular? As pessoas conseguem lhe encontrar em qualquer hora e lugar! Antes de perguntarem se tudo vai bem, perguntam logo onde estão, o que estão fazendo, se vão demorar, se há um telefone fixo por perto, enfim, fazem um questionário, e, só depois dizem o que querem, e antes de se despedirem, perguntam pela saúde e felicidade sem se importarem com as respostas, apressadamente, contabilizando os custos...

- Poeta, os celulares não têm culpa...

- Eu sei... As pessoas não pensam mais. Eu joguei meu celular fora. Para o meu celular, fui um justo juiz. Para mim, para você e quase todos de tão todos, sou um louco.

- Poeta, tenho que ir. Tenho minhas dores para cuidar. Cuide das suas. Encontre Samburá.

- Espelho, você pensa!

- Não. Eu não penso. É porque você está, agora, se olhando em mim.

- Espelho, eu sou louco?

- Muito pouco... É loucura que não se percebe.

E Poeta seguiu pela estrada, rumo à fazenda de Fred Samburá.
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15 março 2008

 

REMY

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Ainda no caminho para Fortim, onde ficava a fazenda de Fred Samburá, havia um castelo-pousada. Ali, Poeta e Espelho fizeram uma refeição e pediram um quarto.

O Poeta pagou adiantado o período da estada, e Espelho descobriu uma fonte de água mineral que virava lama com o toque das mãos humanas.

O gerente do castelo-pousada, um homem negro com a aparência de sessenta anos, explicou para Espelho que não se deve tocar a água, a não ser diretamente com a boca.

Remy era o proprietário, e o cargo era passado de pai para filho. Foram, assim, os últimos seiscentos anos. Espelho admirou-se da mentira contada pelo negro de smoking e de pés descalços, e riu constrangida por não acreditar em história mais absurda.

Sabia, o Poeta, da lenda do castelo-pousada, e dirigindo-se ao educado homem perguntou-lhe sobre os arquivos da pousada. "Encontram-se no vigésimo-primeiro andar", respondeu Remy, virando-se e cumprimentando o Poeta. "Como proprietário do castelo, faço questão de levá-los até lá, e mostrar-lhes nossa papelada e escritos, inclusive com pinturas de nossas guerras contra os colonizadores".

- Como pode ficar no vigésimo-primeiro andar, se o castelo termina no terraço, em um baixo terceiro andar? - questionou, já irritada, Espelho.

- Nossos aposentos ficam todos abaixo do nível do mar. O subsolo é um local agradabilíssimo, a temperatura não passa dos vinte e um graus, a oxigenação é perfeita e pura, entre outros fatores que influenciam diretamente em nosso organismo, nos tornando jovens e saudáveis. Por isso, enterramos nossos mortos. Os antigos acreditavam que assim a vida eterna seria mais interessante...

- Mas... - tentou interromper Espelho, na fronteira entre a irritação e a curiosidade.

- Quantos anos você acha que eu tenho? - Uns sessenta anos... - respondeu Espelho.

- Esta é a idade da minha neta, a primeira neta!, respondeu e fechou os olhos por alguns segundos, obviamente trazendo à mente a imagem da velha que, para ele ainda era uma garotinha.

- Bem, a conversa está muito agradável, mas precisamos descansar um pouco, senhor Remy. - Falou o Poeta.

- Oh, sim, claro! - entendeu o gerente.

No quarto, enquanto Espelho tomava banho e se esfregava com sabonetes e cacos de telha, o Poeta lia, em um folheto do castelo, a biografia dos antecedentes do gerente. Remy era um negro de ascendência francesa, tinha uma fala aveludada e os olhos dourados, que brilhavam no escuro.

Remy não dormia à noite, passava o escuro noturno a comer gafanhoto com chantilly, e nunca sentiu falta de uma hora de sono, pois jamais dormira em toda a sua vida. O homem tinha cento e dezoito anos, e, certamente, em dias maus, aparentava ter, no máximo, metade da idade real.

Quando não comia seus insetos com cremes, Remy tinha a mania de transcrever livros, de trás para frente, não somente as páginas mas também as letras. Isso o faz falar em português, mas totalmente incompreensível.

O cheiro de tapioca invadia o quarto do Poeta.

- O cheiro das coxas de Espelho, pensou.

Espelho saiu do banho. Os esfregões com a telha e os sabonetes baratos deixaram as carnes da morena deliciosamente libidinosas e excitantes.

A partir daquele instante, Espelho só largou o Poeta ao fim de oito dias. Com Espelho, o Poeta aprendeu a fazer sexo por oito dias sem parar, sem a preocupação com necessidades mais baixas, como sede, comida, sono.
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10 março 2008

 

ESPELHO

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O velocímetro do troller do Poeta ultrapassou os duzentos quilômetros por hora. Desligou o ar-condicionado, abriu as janelas e deixou o vento entrar e dançar conforme a música do tempo.

- Vento! - disse o Poeta - Lave-me de mim mesmo...

Ouviu-se, então, um fardo leve, em forma de sopro: - Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

O Poeta se fez novo outra vez. A febre e as amargas lembranças de Arimatéia deixaram-no. Recordando-se apenas da sensualidade aprovada e provocada pela menina de chupeta que rezava o terço. Viu, em pensamentos, suas coxas cores de jambo, os seios que se mostravam sem pudor, a boca carnuda, os olhos apetitosos à procura do dono da fumaça.

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

A picape parou de forma abrupta, obedecendo fielmente o controle mecânico imposto pelo Poeta. Deu retorno na estrada, e voltou até a casa do homem gordo, da velha que rezava em húngaro, do cheiro de tapioca nas coxas da morena-jambo.

Ao parar o veículo em frente ao boteco, o homem gordo olhou apreensivo para o Poeta, a mulher entoou cânticos em outra língua, e a menina mordeu a chupeta até lhe doer cada dente.

- A menina vem comigo! - disse o Poeta.

- Deixe estar. Veremos o que acontece. O senhor só leva a menina se o Deus dos velhos sofredores assim permitir. - Autoritário com o Poeta e submisso ao futuro, falou o gordo de traseiro estreito.

Enquanto isso, Arimatéia e a velha jogavam água benta fervida nas carnes da menina; outras velhas desdentadas e de bigodes grossos, com braços erguidos, cantavam o miserere. Dois velhos que não se banhavam há muito -em sinal de penitência arcaica- faziam suas preces: o primeiro, mais barbudo do que o segundo, lia, em voz eloquente, a bíblia em grego antigo; o segundo, mais escuro do que o primeiro, chicoteava a si próprio, ora olhava para a menina, ora para as velhas, ora para a faca perpetuada nas costas de Arimatéia.

A menina caiu no chão, gritou e vomitou o novelo de cabelos compridos já expurgados, momentos antes, pelo Poeta. Saca o terço de mármore do vestido curto, e quebra-o em dezenas de pedaços.

Silêncio total. Os velhos e as velhas saem cada um para suas casas, mas antes, Arimatéia limpou o sangue do velho sujo e negro que se açoitava, deixando-o limpo para um próximo exorcismo.

A menina entra no troller do Poeta, olha para trás e, cuspindo restos de novelo, grita à velha e sofrida mãe:

- Volto em oito dias.

O Poeta dá a partida e segue para a fazenda de Samburá. Vira-se para a menina, e, sentindo o cheiro de tapioca que vinha de suas coxas, pergunta-lhe o nome. Ela responde: "Espelho. Meu nome é Espelho".
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03 março 2008

 

FEBRE

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A manhã avançava rápida, e os ponteiros do relógio do Poeta seguiam essa sangria sem nó. Ainda com o gosto de vinho e de boca nos lábios, parou em uma venda a fim de tomar um café com leite e comer umas tapiocas.

Entrou. Sentou. Pediu. O dono do boteco-de-beira-de-estrada era um gordo de traseiro estreito, e que bebia cerveja quente com coca-cola gelada.

Enquanto comia, o Poeta sentiu a febre chegar em seu corpo. - Isso lá são horas de pegar uma febre? - pensou, fatigado e incomodado.

Seus pés estavam começando a pesar, e ficou com medo de nunca mais sair dali.

A filha do homem gordo saiu por uma porta azul, mas verde de tão antiga. Era uma moça bonita, na alegria de seus dezoito anos. Trazia à boca uma chupeta de bebê. O Poeta não estava sentindo-se muito bem, e como seus pés já estavam livres, foi lavar o rosto e as mãos. A febre e o calor do café afetaram-no: saía fumaça da testa do Poeta; uma fumaça espessa e gordurosa.

O gordo chamou pela mulher e a filha que tinha a chupeta entre os dentes. Sem tirar os olhos do Poeta, cochichou alguma coisa inaudível para as duas, que entraram rapidamente para dentro de casa, e logo-logo voltaram com cera de carnaúba nas mãos e uma garrafa com água suja. A mulher cantava algum hino cristão em húngaro.

Chamou a atenção do Poeta, o homem gordo, que apontou para uma cadeira de balanço, e fez, autoritariamente, sinal para que sentasse. Obediente e estranhamente direcionado por estranhos, o Poeta sentou e ficou a esperar as ações dos donos do boteco. A filha do gordo chamou um tal de Arimatéia, aos gritos, pela janela do bar. O Poeta pôde escutar a resposta do Arimatéia:

- Tô chegando!

A fumaça espessa e gordurosa que saía da testa do Poeta enchia o ambiente de espanto. Arimatéia chegou sorrindo e rezando, e trazia, horrivelmente, uma faca enfiada nas costas. Pelos olhos do Poeta, Arimatéia entendeu a pergunta e respondeu:

- Em 1958, essa faca me foi enfiada nas costas por um inimigo de Nosso Senhor Jesus Cristo. A promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo seria a minha salvação, mas traria essa faca comigo, para que todos possam ver e crer.

A cada dois minutos, Arimatéia benzia-se, e, de quando em quando, após benzer-se, beijava as costas da mão direita, erguia os olhos, e parecia que enxergava alguma coisa ali.

O Poeta percebeu que as costas do Arimatéia tinham ataduras, pois o sangue não parava de descer. A ferida nunca cicatrizou. A mulher do homem gordo, com as mãos cheias de cera de carnaúba, apertava as têmporas do Poeta. Quanto mais a velha apertava, mais a fumaça saía, e o sangue das costas de Arimatéia escorria com mais velocidade, até formar uma pequena poça no chão.

A menina da chupeta, que já havia acendido uma vela, estava ajoelhada, rezando o terço e mordendo com mais força a borracha da chupeta. A fumaça da vela misturou-se à fumaça do Poeta. Quando a vela chegou ao fim, o Poeta escarrou um novelo de cabelos compridos, e, instantaneamente, a fumaça parou de sair de sua testa. A febre também o abandonou. Sentindo-se melhor, o Poeta agradeceu sem mesmo entender o por quê de tudo aquilo.

Com a alegria e a aridez de um arcipreste, Arimatéia saiu, mas antes se benzeu e benzeu a todos. Desta vez, não beijou as costas da mão, e sim deu cinco beijos rápidos na ponta de cada dedo da mão direita.

O Poeta pagou o que devia. Saiu. E sem entender, mas aceitando a condição de poeta, dirigiu-se à casa de Samburá.

Outra vez, a certeza de alegria nos dias seguintes era-lhe confirmada pela fumaça que lhe saíra da testa e pela faca nas costas de Arimatéia.

- Estranho. Esse mundo é tão estranho... Não vale a pena tentar entendê-lo: ou se entende ou se vive de amores e letras - falou em alta voz, o Poeta.
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21 fevereiro 2008

 

CHEIRO DAS BORBOLETAS

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A caminho da fazenda de Fred Samburá, o Poeta, na velocidade de seu quatro por quatro, sentia os ventos em seus cabelos a açoitar não somente os pêlos mas também os neurônios.

Um sorriso carmesim e adocicado repousava em seus lábios quentes. Quem lhe via de fora, não podia apostar nos seus pensamentos: se na temperatura dos infernos ou na importância social dos colecionadores de bola-de-gude.

Na paz da avenida Litorânea -a estrada para a fazenda do Samburá-, o Poeta notava os calafrios motivados pela saudade precoce dos dias que estavam por vir. A certeza de alegria nos dias seguintes era-lhe confirmada pelo cheiro das borboletas atropeladas e queimadas por seu troller.

Resolveu fugir da saudade e da ansiedade angustiosa, e, para tanto, decidiu lembrar. Lembrar de um passado já enterrado e vívido, onde Samburá era tão-somente um amigo triste que cheirava a peixe.
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11 fevereiro 2008

 

CABELOS REBELDES

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O vento e o Sol que há muito inundava o rosto do Poeta somado ao barulho do despertador o tirou da cama, sobressaltado e, ironicamente, decepcionado e feliz.

- Que sonho! - disse o Poeta, passando as mãos pelos cabelos rebeldes.

Léa, a gata, espreguiçava-se à janela e lambia-se, como fazem os gatos. Depois de um banho frio e rápido, o Poeta encheu diversas travessas de ração, e deixou ligado um sistema de abastecimento de água, para que a gatinha não tivesse sede, enquanto passava os dias na Fazenda do Fred Samburá.

- Água e comida não faltarão, Léa! - falou acarinhando e recebendo, de volta, o carinho ronronado do animal de estimação.

O Poeta pegou a mochila, as chaves do carro, e partiu para a fazenda de Fred Samburá, ainda com o cheiro de chuva da morena e a visão da ruiva de tão linda.

Ao sair de casa, não pôde notar uma corrente de chumbo pesada no meio da sala nem os cacos de vidro da taça que, antes, sob a cama estava cheia.
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09 fevereiro 2008

 

PANTUFAS NO CHÃO

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Espantado e ansioso, o Poeta acordou no meio da madrugada. Teve um sonho estranho, sonhou com montanhas de sorvete e geléia que não acabavam jamais. Levantou e foi direto à cozinha tomar água. Pegou um livro para ler, voltou à cama. Ao lado, viu que dormia Léa, a gata, e em um gesto carinhoso e automático passou a mão sobre o felino, que ronronava e dormia.

Acomodando-se, voltou os olhos ao livro, e leu até perder-se no sono que antes tinha perdido. Não havia notado que, sob a cama, ainda havia uma taça de vinho. Dormindo, o Poeta sonhou um sonho com cheiros dourados e cores surdas. Caminhava descalço, com suas pantufas presas à cintura por uma corrente de chumbo, muito estranho e familiar ao mesmo tempo. Chegando em seu aposento, deliciosamente nuas, duas mulheres o esperavam.

A primeira, uma morena que lembrava o cheiro da chuva; a segunda era ruiva de tão linda, e dela se ouvia o barulho do luar. O quarto, macio e repleto de incenso e penumbra, logo o excitou. A morena com cheiro de chuva tinha uma taça de vinho e, após sorver um pouco, entregou à ruiva de tão linda que, após fazer o mesmo, passou-a ao Poeta. Ao receber o vinho em suas mãos, as correntes com as pantufas foram ao chão, sem o barulho do pesado chumbo. Estranho, pensou o Poeta.

Bebeu o vinho até o fim, de um gole só, e, enquanto a ruiva tomava de suas mãos a taça, via a morena excitando-se, tocando-se e ronronando num ritmo inaudível de feérica masturbação. A taça caiu das mãos da ruiva, e a maciez do quarto não a impediu de se espatifar no chão. Completamente nu, o Poeta beijava e era beijado, os corpos dos três dançavam numa sincronicidade perfeita, quebrando o silêncio com a surdez do ouro, entrando e saindo de aposentos sem serem notados, com os passos firmes, porém calados -como os dos felinos.

O Poeta sentiu o êxtase da morena, e a beijou mais forte, fazendo-a tremer de medo e de prazer, como nunca sentira antes. Deixou-a em um canto do quarto para que ela recuperasse suas força e consciência. O falo do Poeta penetrou a ruiva, depois de lamber seu sexo, e esta sorriu como sorriem os serafins. As pernas da ruiva de tão linda, firmes e cheirosas, acompanhavam o mesmo compasso do Poeta, e ele sentiu o momento em que a moça começou a desfalecer em seus braços, soltando um hálito tão visivelmente lindo e cheio de cores, que foi capaz de fazer, outra vez, a morena masturbar-se enquanto o Poeta não vinha.
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05 fevereiro 2008

 

VINHO NOVO EM ODRE VELHO

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Cedinho da manhã, o seu destino era a fazenda do Samburá. Enquanto arrumava a mochila, escutava Pink Floyd e bebia vinho. O som progressivo apressava o término de cada cálice. Ele sabia disso, e sorria. Os cálices esvaziavam e enchiam como o vento dentro de uma casa arejada.

Um banho quente seria ideal.

Trocou Pink Floyd por Los Hermanos, e baixou o volume. Completou o último cálice como as prostitutas preparam o sexo. Na hora de dormir, mesmo sabendo da viagem para a fazenda do Samburá, fechou os olhos como não precisasse abri-los ao acordar.

Dormiu nu. Juntou-se ao Poeta, na mesma cama, mais para velar seu sono do que para dormir, Léa, a gata. Achara na rua há anos, a morrer de frio e fome.

Sob a cama, a última taça de vinho. Intacta. Era um vinho novo em uma taça usada.
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01 fevereiro 2008

 

AROMAS E SABORES

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Em casa, o Poeta pôde ser livre, quase tanto o é nas ruas. Um pouco mais à vontade, é claro. Despiu-se das roupas e das idéias, menos do sentimento de que na fazenda do Samburá seria bom.

A lembrança das botas veio vívida, e as imaginou olhando para o mar. Ou sendo vistas por ele. Jamais pensaria que alguém, um dia ou uma noite, as levasse consigo. Não! Os poetas não pensam nisso. Já lhes bastam as tragédias pessoais.

Abriu uma garrafa de vinho, bem devagar, quase como um deus que faz suas preces a outro deus. Pôs em um cálice, uma pequena porção do líquido. Cheirou e cheirou (o cheiro lembra hálito de mulher virgem). Provou e provou (o sabor tem o gosto das bocas femininas que tanto gosta de beijar).

- É por isso que gosto dos vinhos... - pensou o Poeta.

Completou o cálice, e absorveu aromas e sabores, quase como um deus que faz suas preces a outro deus.
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30 janeiro 2008

 

AS BOTAS DO POETA

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Saiu descalço, o Poeta, do mar. Ali mesmo, no chão de areia, sentou-se. Neste momento invejou os fumantes, e esperou o tempo passar. Depois de seco e salgado, calçou-se de mundo, deixando suas botas na areia.

Quem o viu sair por aí, podia apostar que seus caminhos eram incógnitos. O Poeta sabia cada esquina que deveria passar.

Os cabelos errantes lhe faziam lembrar o último amor, de tão frio e tão duro. As mãos, em cada bolso da calça, lembravam-no do amor atual: quente e macio, porém separados.

Olhou para o relógio. Viu as horas só por olhar. Entrou no bar de conhecidos, que logo começaram a acenar. Falavam de muitos fatos e coisas.

- Amanhã será dia de loucura, eu sinto desde já. Visitarei a casa do Samburá. Anotem as suas alegrias e tristezas em guardanapos já usados. Levarei para ele, e as guardará como a carta de um pai ausente.
- Poeta, vai mesmo passar uns dias com o Samburá?
- Sim. Ele passou muitos dias conosco...
- Ora, ele estudava com a gente!!!
- Sim! Retifico: ele passou muitos anos conosco...
- Poeta, você esqueceu os sapatos?
- Não. Claro que não! Se os esquecesse seria louco, e vocês teriam a autorização para fazerem a minha internação. Deixei-as, porque quis, no meio do caminho, na areia do mar, olhando para as ondas.

Risadaria em todos os seis cantos do bar: à esquerda e à direita, em cima e em baixo, dentro e fora.

E o Poeta saiu. Deu um adeus tão pesaroso como quem dá um cheque que não quer pagar. Mas ninguém notou. Os poetas mentem formidavel e elegantemente bem.
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29 janeiro 2008

 

SAMBURÁ

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Chamávamos o Frederico de Fred, depois passamos a chamá-lo de Samburá. Isso porque peixe era a principal refeição do Samburá. Seu pai era lagosteiro, possuía três barcos de pesca e uma parafernália tecnológica -em cada barco- para melhor achar o crustáceo.

Pois bem, o Samburá tinha alguns problemas. Além de comer peixe, ele trabalhava com o pai. Tinha sempre o cheiro doce-cobre dos peixes: sempre impregnado em suas roupas, cabelos, pele, hálito, carro, casa, em tudo.

Quer saber o dia do aniversário do Samburá? 28 de fevereiro. Isso lhe garante, na astrologia, ser do signo de peixes. Já pensou? Eu não creio em astrologia, mas que isso vale nessa história, ah!, vale sim!

Outras: quando íamos ao McDonalds, era exatamente o McFish o pedido do Samburá; pizzas? Sempre de atum.

Pois bem, o tempo não perdoa. O Samburá cresceu e deu continuidade aos trabalhos do pai: as lagostas. Com um empréstimo no BNB somado às economias de alguns anos, comprou e montou uma fazenda em Fortim, aqui no Ceará. Viveiros de camarão. O nome da fazenda? 'Recanto do Samburá'. Bem sugestivo, não?

Com o cheiro que ele tinha, sempre encontrou problemas em arranjar namoradas. As casas de massagem eram os refúgios sexuais do Samburá, enquanto os refúgios emocionais ficavam a nosso cargo mesmo, afinal de contas, éramos os seus amigos. Depois passou a comer as filhas dos pescadores. Até que casou com a filha de um empregado, de um pescador que cheirava a peixe também.

Por que eu escrevi essa história? Explico. Recebi um emeio no dia 12 de agosto, dizia assim:

"Poeta, Pôxa, cara, você é difícil de encontrar. Consegui seu e-mail com (...) Faz 5 anos que casei, meu primeiro filho nasceu semana passada. Terei um Dia dos Pais de verdade!!! (...) Anota os meus telefones todos (liga a cobrar, viado!!!), vamos combinar uma visita aqui em casa, passar um final de semana na fazenda. (...)

Atenciosamente,

Fred Samburá"


É. Deu saudade do jeitão melancólico-quieto-metido-a-feliz do Fred, sempre roendo as unhas e as carnes dos dedos, como se aquilo fosse remédio para alguma coisa. Talvez fosse mesmo.

O cara com cheiro de peixe que, no colégio, sempre -sempre mesmo- terminava as provas antes de todo mundo, e conseguia boas notas. O amigo do mar que ia conosco aos shows, e, provavelmente por sentir-se um estranho -um verdadeiro peixe fora d'água, permanecia eternamente de braços cruzados a olhar as bandas tocarem -mesmo quando essas bandas eram Titãs, Paralamas do Sucesso, Cazuza & Barão Vermelho, Legião Urbana, Engenheiros do Hawai... Ah!, lembro de um show do Roberto Carlos, quando o Samburá deu a sua primeira e única reação: sorrir, dançar e cantar a música "Verde e Amarelo". Creio que aquela manifestação ficará sempre na memória de nossa turma.
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27 janeiro 2008

 

O AVESSO DOS PONTEIROS

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O relógio do Poeta marcava duas e trinta e seis da manhã. O ponteiro dos segundos seguia os ritmos perfeito, circular e anacrônico. Ora, cada minuto conseguia, amiúde, conter sessenta segundos, por horas e dias a fio. Essa sincronia treinada, sem erros, sem mudanças, sem tempestividade, inundou de vazio o coração desacertado do Poeta.

Desceu, o Poeta, no rumo da praia, porque é lá que fica o mar. À noite, o mar é muito mais lindo: possui a aparência dos deuses invisíveis, e em sua água sacra só se entra com os pés nus no chão. Com uma lata de coca-cola na mão, saiu por aí, a pé, feito conquistador de prostitutas ricas.
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24 janeiro 2008

 

O PAI DO CASTOR

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Castor tinha dezesseis anos. Um típico adolescente de classe média baixa. Tinha pai, tinha mãe, tinha um irmão e uma irmã deliciosa. O pai de Castor era representante comercial, e trabalhava viajando pelo interior do Ceará e do Piauí. Raras vezes viajava para o Rio de Janeiro, e mais raro ainda era viajar para os EUA. Sempre por intermédio da empresa.

Em uma dessas viagens, o seu Bené já estava com o carro preparado para seguir Ceará adentro, e cumpriu o ritual de beijos e despedidas frias e automáticas com a família.

Briga de família não precisa de nada para começar. Começou. Era uma chateação boba entre Castor e seu pai. Ainda abusado, seu Bené entra no carro dizendo:
- Pode deixar... Daqui a dois dias eu volto, e eu mesmo resolvo.
- Tomara que nem volte. Que fique no meio do caminho. - respondeu Castor.

Bené não voltou mesmo. Sempre tem um carro na contra-mão para atrapalhar a vida alheia. Eu preciso dizer que Castor nunca mais foi o mesmo? As palavras têm poder ou sincronia de acontecimentos pré-agendados? Descuidos do motorista da contra-mão ou pura fatalidade? Azar do seu Bené ou má sorte do Castor?

Cada um acredita como quer.

Castor sempre se considerou o homicida do pai, pensou até em se entregar à polícia. E entregou-se mesmo. Foi o delegado quem o aconselhou a procurar um terapeuta.

Alguns anos de terapia transformaram o Castor no cara mais boa-praça da vizinhança. Sabe que não tem culpa da morte do pai, só lamenta bastante não tê-lo beijado mais apaixonadamente naquela data que seria a última. Aliás, lamenta mesmo é nem ter beijado o pai antes da viagem para a terra do nunca mais.

O filho do seu Bené tem uma lembrança alegre. Uma pizza que pediram na noite anterior, e saborearam em família: rindo, comendo e brincando. Eles se amavam mesmo.
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23 janeiro 2008

 

ÁDVENA

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Não era noite nem madrugada. Não era dia também. Não havia Sol, e as luzes da cidade ainda estavam acesas. Se apagadas, o cenário não mudaria de cor. O escuro do céu já havia ido embora.

A minha gravata estava com o nó frouxo, o aperto na garganta estranhava tudo em mim. Passei o indicador pelo colarinho, já frouxo, para aliviar ainda mais o aperto daquela hora em que o tempo se perdeu.

Um vento frio e morno adentrou minhas narinas. Estava à beira-mar. Era incomum para mim, mesmo assim tirei os sapatos e as meias. Fui molhar os pés na água do mar. Um cheiro doce veio das espumas das ondas. Fiz as mãos côncavas retirarem água para lavar o rosto, e senti o ardor na mão esquerda: havia um rasgo de que eu não conseguia lembrar. O corte em minha mão era violento demais para que eu pudesse esquecer. Meu paletó estava rasgado, sutilmente rasgado, ninguém perceberia, porém seria o suficiente para que eu não ficasse à vontade em público.

As luzes não mudaram em nada. As mesmas negritudes já idas e as claridades das ruas estavam inalteradas. Passou um negro por mim. Nem me olhou, minha presença era desnecessária, chamei por ele, perguntei-lhe as horas, e, olhando para mim, cuspiu em minha direção e riu a risada dos sodomitas. Uma risada obscena e grosseira.

Lembrei da garota que estava comigo há pouco tempo. A garota com quem saí. Jantamos e transamos. O sexo mais enfadonho que prazeroso. Lembrei de todos os momentos pelos quais passamos juntos, e meu estômago reclamou enjoado. Uma mistura de batom, gordura e apetite permaneciam em minha boca.

- Vinho! Eu preciso de vinho!

Entrei em um café sem atendentes, e tomei duas taças de vinho. Não havia ninguém, levei comigo o restante da garrafa de vinho italiano, sem a taça, a fim de beber no gargalo. Na saída, lembrei de que estava sem sapatos, mas disso não sentia a menor falta. Não tinha mais a menor importância para mim, o rasgo do meu paletó. Encontrei um espelho e fitei-me nele.

Olhei-me por alguns minutos. Fiquei olhando aquele que eu sentia ser eu. E o era, de fato. Os olhos saltavam de tamanho sem o meu consentimento, assim como são os olhos das pessoas loucas. Meus lábios possuíam manchas de sangue, que qualquer um poderia confundir com os tons que os vinhos vagabundos deixam na boca da gente. Definitivamente não era vinho. Disso eu sabia muito bem. Olhei outra vez minha mão esquerda, e lá estava o corte que fazia doer e arder.

- Onde estava a garota com quem fiz sexo?

Não havia ninguém na rua. Alguns carros, alguns cafés e restaurantes abertos. Nenhum garçom.

Olhei novamente o espelho, e lá estava quem decerto seria eu. Os olhos alternavam de tamanho, ora arregalados, ora diminutos e tímidos. A minha barba crescera. Eu poderia apostar que a tivera feito no barbeiro, na última tarde, mas o espelho não pode mentir: estava até aqui de barba por fazer.

O vinho acabou, e lancei a garrafa fora com tamanha força que espatifou no poste primeiro que encontrou. Um grito cortou o silêncio. Depois de olhar várias vezes para os lados, à procura do dono do grito, caí em mim: eu mesmo gritei. Eu mesmo me cortara na mão. Eu mesmo não fizera a barba. Eu mesmo saí de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei.
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DIÁLOGO

- Que horas são, Poeta?

- Quase duas.

- E você? Não vai dormir?

- Praquê? Pra cedinho ter que acordar?

- Todo mundo dorme e depois acorda!

- Eu não sou todo mundo, eu sou depois.

22 janeiro 2008

 

Obrigado, Grazzi

Grazzi, minha colega poeta e escritora, mesmo sem saber, incentivou-me a reativar este blog, que mostra minhas tantas tentativas de mal traçadas linhas.

23 outubro 2007

 

MINHA PRIMEIRA VEZ

MINHA PRIMEIRA VEZ
Confesso que, quando lembro da minha primeira vez, solto um sorriso amarelo com um dos cantos da boca. Eu era muito inexperiente, e acreditava que aquele momento era o correto. Para ser sincero, eu não sabia como era esta situação, tinha apenas uma vaga idéia, mas, lá, na prática, percebi que a vaga idéia era vaga mesmo.

Admito com franqueza: não estava querendo provar nada para meus amigos, era algo de foro íntimo mesmo. Eu sentia que iria me sentir melhor depois desta experiência. Eu não tinha a menor sombra de dúvida que eu sairia desta vivência mais maduro, iria ser um Rodrigo diferente.Bem, apesar da idade, tive uma postura que considero digna, madura, louvável: depois de decidido, era assumir e agir.Estava no local pré-determinado por mim, antecipadamente planejado. Tudo devidamente consultado para minimizar os contratempos. Essa organização e iniciativa eu perdi com o passar dos anos. Que pena!

O ambiente era limpo, tinha um cheiro de “Kiboa” e “Pinho Sol”, penso que era exatamente para oferecer essa percepção de limpeza e higiene. Rapidamente resolvi os pormenores iniciais, e fiz uma escolha (para mim, a mais correta), pois deveria durar aproximadamente cinqüenta minutos.Logo senti falta de um ventilador. Nossa! Como aquelas hélices giratórias tornariam minha vida mais suave naquele momento.

Olhei para o pequeno ambiente. De repente envergonhei-me, lembrei de meus pais. Como seria a reação deles sabendo que eu estaria ali, e meu coração disparou. Tanto disparou que pensei que ele iria saltar boca a fora. Tentei pensar em outras coisas, e devo ter conseguido, fiquei menos nervoso.Tentei demonstrar naturalidade e experiência (enganar, apenas, a mim mesmo que não era a primeira vez). Abri a torneira da pia, que logo começou a encher, e falei alto, com a voz forte, como quem manda na situação:
- Quando a pia encher por completo, serão duas as opções: ou secar ou brincar de fazer barquinho de papel, mas eu não vim aqui para fazer barquinhos de papel! – percebi, ao mesmo tempo, a tolice que dissera e medo de ser ouvido por alguém do lado de fora, medo de chamar a atenção indevidamente.

Resolvi não mais falar nada.Não sei quanto tempo passou, mas eu estava suando, tive dificuldades iniciais, não sabia nem onde pôr as mãos, as pernas... Era quente, úmido, e o cheiro de “Kiboa” e “Pinho Sol” não faziam mais tanto sentido assim. Descobri outros aromas.

Eu poderia sentir cada gota de suor que escorria de minhas costas e, incrivelmente, senti o cheiro do meu perfume, que deve ter entrado em ação com o meu suor. Eu não tirei os óculos um só minuto. E ali estava eu, firme e forte, realizando um projeto importante na minha vida, a primeira de muitas. As seguintes viriam de forma mais natural, com menos estresse. Certamente, eu já aprendera bastante apenas com essa primeira vez.

Escutei, longe, um barulho familiar que me dava a noção do tempo. Os cinqüenta minutos estavam bem próximos do fim, e eu, sentia-me outro. Uma sensação de prazer, alívio, calor, frio, orgulho, exaltação, liberdade... Sim! Liberdade! Esse era o maior sentimento: liberdade.

Lavava-me e tentava enxugar, ao máximo, os sinais de suor, os sinais que provavam que eu estivera ali. Era algo que só pertencia a mim. A mim, somente. Bateram à porta. Não tinha mais dúvida. Os cinqüenta minutos encerraram-se. Abri a porta do minúsculo banheiro, e olhei para as pessoas de forma diferente; não sei se me viam de outro jeito (mas isso não importava), eu tinha feito. Pela primeira vez, aos dez anos de idade, gazeei aula. Religião foi a disciplina que decidi perder, e não precisei me sentir culpado. É isso aí. Estava pensando que era o quê, hem? Mente engraçada a sua. Risos.

Um beijo e uma alegria do Poeta Menor.

 

SERÁ?

SERÁ que devo voltar a atualizar este blog? Preciso de umas 27 razões para isso.

31 dezembro 2005

 

RE-COMEÇO

Seja bem-vindo, mas ainda estou em profundo estado de hibernação literária.

Sinto muito, você não poderá --por enquanto-- ter acesso às minhas mal traçadas linhas.

Atendendo a pedidos, farei o maior esforço para escrever textos mais curtos.

Rodrigo d'Almeida

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